O PEDAÇO QUE MAIS GOSTO
16/04/2025 03h32 - Atualizado há 24 dias

O PEDAÇO QUE MAIS GOSTO.



Numa dessas noites comuns de quarta feira, em 2025, jantávamos galinha caipira no AMAS. Na mesma mesa, eu e meu amigo Luiz Mário.— cúmplices de uma conversa que transcenderia o trivial daquele encontro. 

Um parênteses, antes de falar do assunto principal. Por amor ao futebol, destaco a coragem desse guerreiro, submetendo-se a cirurgia do joelho. Seu objetivo? Retornar ainda mais vigoroso ao time dos 50+. Soma-se, assim, à galeria dos aguerridos Elyson, Wilson, Pedro entre outros resilientes ao esporte. Voltando ao jantar, Luiz Mário comentava que gosta muito de algumas partes da galinha caipira, que, por sinal, coincidiam com os pedaços que a minha mãe gostava: pescoço, pé, asa, algo assim. Mencionou que seu pai compartilhava idêntico gosto. Eu, em contraponto, revelei minha preferência pelas porções mais generosas em carne. "Meu filho também", respondeu ele, com um sorriso cúmplice. Naquele instante, percebi algo mais profundo do que uma simples coincidência de paladar. Luiz Mário, primogênito que zelou pelos demais irmãos; minha irmã, também primogênita, nutre apreço pelas mesmas partes da ave. Eu, caçula de minha linhagem, jamais compreendi, na infância, a atração por aqueles pedaços — ossos em abundância abraçados por escassa carne. Certo dia observei lágrimas em seus olhos. Sem explicar o porquê, talvez, me protegia das amarguras que a sabedoria concede aos mais experientes para proteger os menores. Hoje entendo o porquê de tudo, e espero que o caçula do Luiz Mário decifre, também, esse enigma afetivo: eles deixavam para nós a pouca proteína do dia porque precisávamos mais. Como fizera os pais em relação a si. Afinal, crescidos e investidos de responsabilidade com a família, sentiam-se naquele sagrado dever, como se pai e mãe fossem. Naqueles tempos, não desfrutávamos da abundância que hoje nos cerca. Quem possui em demasia —e aqui não falo de alimento, mas de sabedoria — deve amparar quem tem pouco. Minha irmã me guiou e continua a iluminar meus caminhos. Eu a amo, numa dimensão que só Deus o sabe! E assim, por essas misteriosas teias do destino, transferi ao meu amigo Luiz Mário idêntico sentimento. Primogênitos que herdaram a sublime arte do compartilhar. Esta reflexão de gratidão, do fundo do coração, é infinitamente pequena perto do que merecem. Os estoicos, em sua profunda sabedoria, trabalhavam lado a lado com seus colaboradores em determinados períodos do ano. Ao retornarem dos campos, permitiam que as mulheres servissem a mesa e convidavam os trabalhadores a sentarem-se e deleitarem-se com a refeição diária. Embora exaustos e famintos após uma jornada extenuante, nada consumiam; ou melhor, venciam o desejo da fome e do cansaço. Permaneciam nos bancos posteriores do banquete, testemunhas silenciosas daquela comunhão, exercitando um rigoroso controle interno. O espírito dominando a matéria. Mestres, tal como Luiz Mário e minha irmã. É provável que os primogênitos de nossa narrativa real não fossem adeptos do estoicismo, talvez sequer conhecessem os mecanismos de controle da dopamina cerebral. Mas, confidencio-lhes, ‘o pedaço que mais gosto’: como enriquece(ram) nossas existências com suas sabedorias! Quem partilha conhecimento colhe vida em abundância. Por isso me alegra simplesmente, em dividir o mesmo espaço que eles ocupam, mesmo quando o silêncio é nossa única linguagem! 

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