MARIA. POR UMA NOVA FRATERNIDADE.
Esperava, numa manhã de sábado, o pedido do café que tomaríamos em casa, sentado no banco alto do balcão de uma padaria na avenida Calama, em nossa capital. Enquanto isso, refletia sobre singularidades da vida. Esperar, por exemplo, é sentimento que anda na contramão do mundo exigente por soluções rápidas, a cada fração de tempo. O antigo segundinho fora rebaixado ao patamar de hora.
Não muito diferente dos demais clientes da padaria, minha multifacetada atenção dividia-se entre as mensagens no celular, conversas com o atendente, e a ligeira cautela à movimentação ambiental. “Ore, mas feche a porta”!
O cheiro de bacon, ovos fritos, tapioca e queijo, que exalava das frituras na chapa quente tomava conta daquele ar compacto, deixando para trás o perfume costumeiro pós banho matinal.
Ficará rico quem conseguir a proeza de separar esses ‘cheiros’ misturados à refrigeração do ar-condicionado e às moscas nesses ambientes. Não bastasse, senti bem próximo de mim, um forte odor. Há quem não goste de tomar banho pela manhã. Aquela ‘fragrância’ baralhada as já existentes inquietou-me o espírito, e tornou longa minha espera. Pressa inútil. Não havia nada a fazer, senão obedecer a fila de espera. O atendente, que pareceria ler meus pensamentos, percebeu o desconforto, e sorriu acenando com a mão: já, já! (minha amiga Rosa falava: ‘jazinho’. Aprendi tratar-se de fração mais veloz que segundinhos). Parece que não estou na contramão desse delírio!
Ao meu lado nossa personagem, que, segundinhos depois, se revelara. Percebi que a reconhecia, há tempos. Pedinte no semáforo do Shopping. No silêncio do carro sempre a observava, no percurso de ida e volta ao trabalho. Vestido verde escuro surrado num corpo esquelético. Cabelos ruivos e pele vermelha, duramente castigados pelo sol. Olhar penetrante, cachecol no pescoço, pose e andar de modelo. Movia-se com elegância ao estender o pedido de esmola. Lembrei-me que isso se passara muito antes da pandemia. Naquele tempo, me veio a impressão de presenciar o início da decisão de quem resolve descer dos palcos da vida, para ficar, dia após dia, estendendo a mãozinha à espera de um milagre.
Mas eis que, furtivamente, entre nós nasce um diálogo.
— Oi, tudo bem com você? Como se chama?
Respondeu, secamente:
— Tudo. Maria, e continuou comendo pão com manteiga, acompanhado de uma xicara de café com leite. Olhos fitados para baixo.
— Você é daqui?
— Não, sou de Natal, Rio Grande do Norte.
— Mudou de semáforo?
Como se perturbada, antes de responder fixou, profundamente, seus olhos em mim, de modo intimidador. Talvez, quisesse falar além das palavras.
— Mudei, igual aos meus colegas, do presente e do passado. Além de pedir, temos a missão de desafiar a imaginação de quem nos enxerga como animais na paisagem urbana. Não temos dia nem noite. Existimos fora da gaiola que aprisiona o mundo em delírio, e às ideias que impulsionam à ilusão de ajudar alguém. Na verdade, essa sociedade é quem precisa de ajuda. O servir autocomplacente de quem precisa ofertar migalhas para ficar feliz, pode ser um sinal desse mal. O escárnio das moedinhas que nos sobram, vocês ficam filezinhos, não é ? Então, somos pedintes de ofício, enviados para os desafiar; e vocês, mendicantes à espera de uma Graça. Deus me livre! Já encontramos o nosso sentido nesse mundo. Veja como nos olham sem nos enxergar. Somos um fato, além dos sábados ou de um dia de Natal. Somos a alma (in)útil que persegue, desde sempre, o drama humano da falta de sentido na vida. Deus nos livre!
Fiquei sem reação. Disse ao atendente: anote as despesas dela junto às minhas. Mas, como um tiro de misericórdia ela finalizou:
—Não, não precisa, eu pago minha conta. E puxou um monte de moedinhas que davam forma a um saco pendurado junto ao quadril.
O atende sorriu, e pontuou:
— Ela sempre vem aqui, mas não permite que ninguém pague a conta dela, o café não. O senhor não é o primeiro a tentar.
Voltei para casa emudecido, refletindo sobre a qualidade e quantidade de tempo necessário para transcender a fraternidade que pratico nesse mundo “e percebo nele e dele participar. E, mais ainda, sei e sinto não estar sozinho...”[i].
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[1]PS. Texto inspirado em fato real. A obra: “Deus nos livre! de Mario Sérgio Cortella (2024), que recheou o escrito de sabedoria, foi decisiva para extrair da memória esse desafio que dedico aos 23 anos de trabalhos no AMAS, em 2024. ////////////// * Advogado. Presidente do AMAS. 2024-2025.